Sendo sal fora do Saleiro
SENDO SAL FORA DO SALEIRO
"E não aparecendo, havia
já alguns dias, nem sol nem estrelas, caindo sobre nós grande tempestade,
dissipou-se afinal toda a esperança de salvamento. Havendo todos estado muito
tempo sem comer. Paulo, pondo-se em pé no meio deles, disse: Senhores, na
verdade era preciso terem-me atendido e não partir de Creta, para evitar este
dano e perda. Mas, já agora vos aconselho bom ânimo, porque nenhuma vida se
perderá de entre vós, mas somente o navio. Porque esta mesma noite o anjo de
Deus, de quem eu sou e a quem sirvo, esteve comigo, dizendo:
Paulo, não temas; é preciso
que compareças perante César, e eis que Deus por sua graça te deu todos quantos
navegam contigo. Portanto, senhores, tende bom ânimo; pois eu confio em Deus,
que sucederá do modo por que me foi dito. Porém é necessário que vamos dar a
uma ilha." (Atos 27:20-26)
No Capítulo anterior,
falou-se acerca do ser sal fora do saleiro, do sal que dá gosto ao desgosto da
vida, trazendo-lhe o sabor de Deus à existência. Neste, estaremos abordando
comparativamente, duas experiências de relacionamento humano completamente
distintas. A primeira, a de Jonas, o profeta, que entra num navio para fugir de
Deus e não o consegue, tendo o seu propósito malogrado. A segunda, a de Paulo,
o apóstolo, que entra num navio, como prisioneiro, a fim de cumprir a vontade
de Deus e o faz a contento, tendo a sua atitude conseqüências extraordinárias.
São duas experiências vividas por personagens em contato com sociedades pagãs.
Jonas, viajando num navio cosmopolitano, no qual havia pessoas que tinham
crenças em deuses os mais diversos (Jonas 1:5) . Paulo também estava viajando
num navio cosmopolitano, cercado de presos, com um número de tripulantes e
passageiros chegando a 276 pessoas (Atos 27:37) . Tal navio era capitaneado por
um centurião romano (Atos 27:1) e com uma tripulação provavelmente grega. O que
acontece com esses dois personagens é totalmente diferente, ainda que viajando
em navios, e no mesmo mar o Mediterrâneo; apesar de ambos chamarem o mesmo Deus
de Deus (Jonas 2:6b; Atos 27:23) ; conquanto façam suas orações para o mesmo
Ser espiritual, crido como o Deus único, verdadeiro e eterno. Mas, as respostas
que cada um dá a Deus são distintas, pelo simples fato de que as compreensões
de cada um deles sobre o mundo, sobre a história, sobre o próximo, sobre as
religiões, sobre as culturas e sobre as sociedades humanas eram radicalmente
distintas. Então a questão é: por que é que Jonas não consegue salgar o
ambiente onde está, ao passo que Paulo consegue contagiar, contaminar com sua
vida as pessoas que estavam à sua volta?
SENDO SAL FORA DO SALEIRO
Jonas é o sal que não quer salgar; Paulo é o sal que quer salgar a terra inteira. Por quê? Por causa de possuírem teologias diferentes. Jonas tinha uma teologia da segregação, do apartheid, a teologia do "eu-sou-mais-santo-do-que-o-resto-da-sociedade", uma teologia da eleição de Deus que trabalhava contra a inclusão do eleito no mundo, sendo uma eleição que excluía e que era exclusiva aos eleitos, portanto exclusiva e excludente. Já Paulo, mesmo se concebendo como um eleito para a missão de Deus no planeta, via tal eleição como inclusiva, inserindo-o na graça e na bondade de Deus para o mundo todo. Jonas se imagina alguém que tem a missão de separar os homens. Paulo, porém, se entende como alguém que tem diante de si a missão de destruir muralhas, barreiras, com o propósito de chamar os diferentes a uma só fé em um só Senhor, que é Jesus Cristo. Veja como são importantes as nossas concepções, nossa visão da realidade que nos cerca. Não basta chamar Deus de Pai, não basta dizer que Jesus Cristo é o Senhor; não basta proferir palavras como salvação, redenção e libertação, até porque em si mesmas elas não significam nada. Quando alguém chama Deus de Pai, ele pode estar chamando Deus de pai na mesma perspectiva por meio da qual filhos caprichosos chamam seus pais de pais, ou seja, eles têm uma relação doentiamente fechada e confinada com quem chamam de pai, não conseguindo vê-lo e nem a si mesmos como fazendo parte de um relacionamento mais amplo com o resto da comunidade humana. Quando alguém chama Jesus de Senhor, isso não significa muita coisa. às vezes, ouve-se alguém dizer que Jesus é o Senhor, e realmente Jesus é o dono de sua vida. No entanto, ouve-se, às vezes, um outro alguém chamando Jesus de Senhor, todavia com uma significação de ditador, de "Hitler" de sua vida, não vendo a submissão como uma prerrogativa da missão, mas confundindo missão com dominação.
Avaliar as palavras que
usamos, como também os conteúdos que elas veiculam, é fundamental, visto que
elas refletem e traduzem, de algum modo, a nossa compreensão do mundo e a nossa
resposta a Deus e à vida.
SENDO SAL FORA DO SALEIRO
SALGANDO OS RELACIONAMENTOS
Outra coisa que deve vir à
nossa mente para que entendamos como essas duas pessoas Jonas e Paulo são tão
diferentes no meio em que atuam, é a que tem a ver com o resultado da resposta
deles aos contextos em que cada um se insere. Ambos estavam num navio, sendo
fustigados por uma tempestade avassaladora, cercados de pessoas pagãs, vivendo
uma situação imensamente tensa e dramática, no limiar entre a vida e a morte,
mas, conquanto tais circunstâncias tenham sido experimentadas por ambos, a
reação de cada um deles é diferente diante delas. Jonas tem uma visão
excludente, portanto, que exclui, porque pensa nos ninivitas como inimigos do
povo de Deus, declarando guerra àqueles que são politicamente diferentes dele,
sucumbindo a um nacionalismo fascista, pensando em si e no povo de Deus como
eleitos e separados do contato e do convívio com o resto da sociedade humana.
Em virtude dessa visão de mundo, conseqüências trágicas se evidenciam na sua
vida. Primeira conseqüência trágica na vida de Jonas se explicita no fato de
que ele não conseguia amar os diferentes, só amando os iguais. Se é gente como
ele, este consegue amar, porém sucumbindo à reação dos pagãos, aos quais já se
referia Jesus, dizendo acerca deles que tratavam bem àqueles que os tratavam
bem; tratavam mal aos que os tratavam mal; amavam aos que os amavam; enfim
Jesus falava sobre a previsibilidade do pagão: dá-se bem com quem é igual;
dá-se mal com quem é diferente.
Jesus, porém, recomendou-nos
o contrário, dizendo que deveríamos quebrar a previsibilidade relacional na
sociedade:
"Ouvistes que foi dito:
Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai os
vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do
vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e vir
chuvas sobre justos e injustos. Porque se amardes os que vos amam, que
recompensa tendes? Não fazem os publicanos também o mesmo? E se saudardes
somente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os publicanos também o
mesmo?" (Mateus 5:43-47)
"Digo-vos, porém, a vós
outros que me ouvis: Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam;
bendizei aos que vos maldizem, orai pelos que vos caluniam. Ao que te bate numa
face, oferece-lhe a outra; e ao que tirar a tua capa, deixa-o levar também a
túnica; dá a todo o que te pede; e se alguém levar o que é teu, não entres em
demanda. Como quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a
eles." (Lucas 6:27-31)
O próprio Paulo, escrevendo
aos cristãos de Roma, advertiu-os quanto a isso:
"Pelo contrário, se o teu
inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; porque,
fazendo isto, amontoarás brasas vivas sobre a sua cabeça. Não te deixes vencer do
mal, mas vence o mal com o bem." (Romanos 12:20-21)
Pagãos e incrédulos são os
que se dão bem com os iguais; cristãos amam os diferentes. A segunda conseqüência
trágica que acontece na vida de Jonas é que ele queria fazer missão entre
aqueles de que gostava, numa espécie de missão da auto-afirmação, a qual não
constrói nada, uma vez que é destinada àqueles que são obviamente complacentes
ao que lhes está destinando a palavra; é a missão entre aqueles que assimilam
um mesmo ponto de vista.
Missão, para Jonas,
significava preservação do povo de Israel, não sendo ganhar aqueles que estavam
distantes de serem ganhos. Era inconcebível para ele abraçar os ninivitas
repudiáveis, os inimigos políticos do povo de Israel. Por isso, Jonas preferiu
não ter um futuro a ter um presente com quem ele não gostava, preferindo que
sua vida não tivesse futuro algum, e não querendo, sob nenhuma hipótese, viver
com quem ele não se dá bem. Jonas, de certo modo, é daquele tipo de gente que
diz: "Se no céu vai ter ninivita, eu prefiro ficar no inferno."
Com isso, Jonas se torna
amargo, cáustico, hostil, em guerra profunda dentro de si mesmo contra aqueles
que acha que são inimigos do povo de Deus. Seu mundo reduz-se a um determinado
universo: há pessoas "convertíveis" e pessoas que, mesmo querendo se converter,
Jonas não as queria.
"Se eu fizer apelo, e
algum ninivita se converter, faço de conta que não vi e termino o culto antes.
poderia pensar Jonas. Em contrapartida, veja como a compreensão que Paulo tinha
de Deus permitia-lhe ter um significado de missão totalmente diferenciado do de
Jonas. Primeiramente, Paulo dizia que preferia se perder a perder aqueles pelos
quais Jesus morreu:.
"Digo a verdade em
Cristo, não minto, testemunhando comigo, no Espírito Santo, a minha própria consciência.
(...) porque eu mesmo desejaria ser anátema, separado de Cristo, por amor de
meus irmãos, meus compatriotas, segundo a carne." (Romanos 9:1 e 3)
O compromisso de Paulo era
tão levado a sério que a sua própria vida poderia ser destruída, aniquilada e
arruinada, não querendo, de modo algum, que ninguém por quem Jesus morreu
viesse a se perder, não importando se era judeu ou gentio, se era escravo ou
livre, se era monoteísta ou politeísta, se era crente ou pagão. Paulo concebia
o mundo como feito por Deus, para Deus e que por isso devendo se reconciliar
com Deus. Em razão disso, ele fazia de tudo para com todos, para ver se
conseguia salvar alguns:
"(...) Fiz-me tudo para
com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns." (I Coríntios
9:22b)
Em virtude disso, mesmo no fim da vida traído,
espoliado, abandonado, sendo "passado para trás" por alguns que
diziam ser seus amigos mas não eram, Paulo escreve a segunda carta a Timóteo (Capítulo
4) , onde se vê o "apagar das luzes" de sua vida, mas também se vê a
chama viva da fé na sua alma, continuando a sonhar com o mundo que vai ser
impactado pela graça de Deus e pelo evangelho de Jesus Cristo:
"Procura vir ter comigo
depressa. Porque Demas, tendo amado o presente século, me abandonou e se foi
para Tessalônica; Crescente foi para a Galácia, Tito para a Dalmácia. Somente
Lucas está comigo. Toma contigo a Marcos e traze-o, pois me é útil para o
ministério. (...) Alexandre, o latoeiro, causou-me muitos males; o Senhor lhe
dará a paga segundo as suas obras. (...) Na minha primeira defesa ninguém foi a
meu favor; antes, todos me abandonaram. Que isto não lhes seja posto em conta.
Mas o Senhor me assistiu e me revestiu de forças, para que, por meu intermédio,
a pregação fosse plenamente cumprida, e todos os gentios a ouvissem; e fui
libertado da boca do leão. O Senhor me livrará também de toda obra maligna, e
me levará salvo para o seu reino celestial. A ele, glória pelos séculos dos
séculos. Amém." (II Timóteo: 4:9-11;14;16-18)
Já sabemos porque essas duas
pessoas Jonas e Paulo dão respostas tão diferentes à mesma situação; já
conhecemos também os resultados de se ter uma teologia adoecida ou de se ter
uma construção teológica sadia na mente; como uma empurra para uma exclusividade
egoísta, enquanto outra empurra para uma exclusividade altruísta da graça de
Deus que inclui os que estão fora.
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